Memória: um mal de arquivo
- Gabriela

- 6 de out.
- 8 min de leitura
Qual é a relação entre a pulsão de morte e a memória? Entre pulsão de morte e arquivo? Como essas questões se relacionam ao famoso texto de Freud, O Mal-estar na Civilização? Neste texto, me proponho a examinar estas interrogações através do Mal de Arquivo - Uma Impressão Freudiana, conferência de Derrida publicada em 1995.
A palavra arquivo tem um sentido amplo: podemos pensar num caderno de notas, num documento – público ou privado, mas também nas nossas próprias memórias que foram arquivadas no nosso aparelho psíquico. A partir de uma leitura de Derrida com Freud, esperamos argumentar que o arquivo não é um lugar objetivo, nem mesmo encontrável num sentido primordial ou original, e que é a pulsão de morte que faz com que o arquivo esteja sempre sujeito a perder-se, a transformar-se e também a conservar-se – ainda que este ultimo possa parecer contraditório. Assim, a fim de introduzir o tema central deste texto, parece pertinente revisitar os aspectos mais gerais do arquivo, tal como Derrida os expõe.
O conceito de arquivo de Derrida está presente na sua obra A Escrita e a Diferença e também em Mal de Arquivo - Uma Impressão Freudiana. Neste último texto, Derrida retoma a palavra a partir da sua raiz Arkhé, que significa ao mesmo tempo começo e comando. A partir deste desvio pela etimologia, aprendemos alguns elementos fundamentais sobre o arquivo: ele não é neutro, passa por um processo; está inscrito numa história; há um aspeto de dominação masculina sobre o arquivo; há uma relação entre o arquivo e o poder; o arquivo encontra-se numa ambiguidade de ser ao mesmo tempo instituidor e conservador, revolucionário e tradicional; e, finalmente, a pulsão de morte está intrinsecamente ligada ao arquivo.
Primeiramente, é a relação entre começo e comando faz com que o arquivo seja desprovido de neutralidade e de objetividade. O sentido de começo remete-nos a um lugar: físico, histórico ou ontológico, ao primitivo; e o comando indica aqueles (os arcontes, segundo Derrida) que possuem esse arquivo e que, portanto, terão poder sobre ele. Assim, o arquivo reside num lugar e aqueles que o possuem têm o poder de interpretá-lo. Desta forma, o arquivo não pode prescindir nem de suporte, nem de residência, e talvez nem de um comando. É uma dinâmica de poder inerente ao arquivo que levanta questões fundamentais quanto à fiabilidade da memória ligada ao arquivo e também à construção das narrativas históricas: "nenhum poder político sem controle do arquivo, senão da memória"(1). Pois, o próprio ato de arquivar um acontecimento já passa pelo filtro daquele que arquiva e que será ainda o detentor da sua interpretação - um poder arcôntico, em termos derridianos.
Este comando e poder arcôntico é, na verdade, patriarcal. Derrida retoma as palavras de Sonia Combe (p. 315):
Que me perdoem por dar algum crédito à observação que se segue, mas não me parece ser puro acaso que a corporação dos historiadores notórios da França contemporânea seja essencialmente, com algumas exceções, masculina...
Esta observação evidencia as consequências do poder sobre os arquivos: uma assimetria significativa na produção da narrativa histórica dominante. A hegemonia masculina não é apresentada como uma simples coincidência, mas como o sintoma de uma estrutura de poder mais ampla, onde a concentração do poder de arquivo em mãos maioritariamente masculinas levanta questões cruciais quanto às narrativas. Ou seja, se os arquivos foram feitos historicamente e majoritariamente por homens, a história não será neutra e menos ainda igualitária. Para além do lugar e do poder, Derrida propõe também a consignação: uma certa coerência. Ele afirma que "o princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, ou seja, de reunião"(2). Uma coerência patriarcal, então?
A coerência seria importante porque o segredo e o heterogêneo ameaçam a possibilidade de consignação e produzem graves consequências para uma teoria do arquivo e a sua institucionalização. No entanto, ao mesmo tempo aprendemos que os arquivos nunca estão fechados e que não se esgotam com novas interpretações, e é por isso que que "cada indivíduo, cada geração pode ter a sua própria interpretação dos arquivos"(3). Não se trata de um poder fechado. Há uma dialética entre a preservação e a destruição no cerne da condição de arquivo, trata-se de um paradoxo fundamental: a pulsão de morte destrutiva é inerente ao arquivo, cuja função é preservar. Mas é preciso saber que, ao contrário do princípio de prazer ou do princípio de realidade, "a pulsão de morte não é um princípio. Ela ameaça até mesmo toda a primazia arcôntica, todo o desejo de arquivo. É o que mais tarde chamaremos de mal de arquivo"(4). Ou seja, algo é arquivado porque pode ser perdido, ao se arquivar, busca-se uma coerência para evitar múltiplos sentidos. Desejo de arquivar e desejo de coerência são desde a sua origem assombrados por algo que podemos chamar de pulsão de morte: uma destruição inevitável. Ao arquivar já esta perdido o "conteúdo original" (pois submetido ao filtro daquele que arquiva) e uma coerência definitiva é impossível pois sempre sujeito a novas interpretações, novos sentidos.
Para chegar à pulsão de morte, Derrida faz uma desconstrução do texto de Freud O Mal-estar na Civilização (1930) e sublinha alguns aspetos sobre o que ele vai chamar a assinatura freudiana sobre o conceito de arquivo (e, por extensão, sobre a noção de conceito em geral), a função de economia arquival e a pulsão de morte. Derrida mostra que, apesar de um movimento retórico de hesitação em Freud neste texto – um gesto paradoxal – onde ele questiona a necessidade de mobilizar uma "máquina de arquivo" para não dizer nada, fingindo não ter nada de novo nem de importante a acrescentar, Freud vai finalmente anunciar o que é, para ele, não simplesmente uma hipótese, mas uma tese(5) totalmente irresistível: a pulsão de morte. A máquina de arquivo movimentada por Freud era orientada justamente pela pulsão de morte.
Segundo a interpretação derridiana, esta pulsão revela-se como "uma perversão radical, justamente, uma diabólica pulsão de morte, de agressão ou de destruição: portanto, uma pulsão de perda"(6). Assim, a hesitação freudiana não era um simples preâmbulo, mas participou ativamente na maneira como a pulsão de morte se impõe no texto – e talvez possamos afirmar que a pulsão de morte é como uma força que trabalha no próprio pensamento freudiano. É porque ele resiste ao arquivo que aquilo que o mina, a pulsão de morte, surge com força. Esta emergência "irresistível" da pulsão de morte acontece no momento exato em que Freud parece travar a "máquina de arquivo", e demonstra que a pulsão de morte está intrinsecamente ligada tanto à possibilidade, quanto aos problemas do arquivo. Ela não é apenas um objeto de estudo para o arquivo, mas uma força que o torna possível e o ameaça por dentro. Assim, há um duplo movimento na relação entre a pulsão de morte e o arquivo: "ela [a pulsão de morte] trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar, mas também com vista a apagar os seus 'próprios' vestígios – que, desde então, não podem ser propriamente ditos 'próprios'. Ela devora-o, o seu arquivo, antes mesmo de o ter produzido no exterior"(7).
Derrida chama de anarcôntico o caráter da pulsão de morte no arquivo, um termo que sublinha a força de desorganização e de destruição no seio mesmo daquilo que se destina a conservar e a transmitir. Esta designação evidencia a tensão paradoxal: o arquivo, guardião do passado e fundamento da tradição, carrega em si uma tendência intrínseca ao apagamento, à perda e ao caos. Pois há uma radicalidade de apagamento, de agressão e de destruição: pelo fato de apagar o seu próprio rasto, a pulsão de morte é, por vocação, silenciosa, não deixando nem monumentos nem documentos que lhe sejam próprios. E, no entanto, encontramos três características essenciais no arquivo: ele tem um lugar de consignação, uma técnica de repetição e, claro, uma certa exterioridade, um fora. Mas como é que isto funciona se a pulsão de morte lhe é intrínseca? Acontece que o lugar de consignação está ameaçado de nunca se reduzir a um representante mnemotécnico ou a um auxiliar de memória, porque se houver uma estabilização de significado, ela nunca será a memória, "muito pelo contrário: o arquivo acontece no lugar da falha originária e estrutural da dita memória"(8). A repetição, fundamento da arquivologia, está também ligada ao modus operandi da pulsão de morte, criando um paradoxo onde aquilo que permite a conservação é também o que a expõe à destruição. É preciso dizer que: "o arquivo trabalha sempre e a priori contra si mesmo"(9) e é isso que o mantém aberto, em movimento arquival.
Derrida nos dá ainda algumas especificidades sobre a relação entre a pulsão de morte e o belo. Trata-se de uma investigação sobre a maneira como o belo pode emergir, persistir ou ser percebido através do prisma desta força destrutiva, potencialmente como um vestígio, talvez um rasto ou mesmo uma manifestação desta. Já dissemos que a pulsão de morte, o anarcôntico no arquivo, não deixa rasto e que produz um apagamento. No entanto, o belo seria a exceção capaz de romper com a vocação silenciosa da pulsão de morte. Trata-se de uma cor erógena que desenha máscaras, de simulacro erótico, de ídolos sexuais, de pintura, em suma: de belas impressões. Se até aqui, no seu texto, Derrida não desenvolve mais esta relação entre o belo e a pulsão de morte, Lacan, por sua vez, dedicou a ela uma parte do seu Seminário VII cerca de 30 anos antes. Para Lacan, o belo é uma espécie de barreira diante da pulsão de morte e, face a esta barreira, o belo teria como função tanto nos parar antes da passagem, quanto ser uma impressão / um sinal / um índice da presença da pulsão de morte:
a verdadeira barreira, na medida em que detém o sujeito diante do campo, a bem dizer, inominável do desejo, do desejo radical enquanto campo da destruição absoluta, da destruição para além da própria putrefação, é propriamente este fenômeno que se chama o fenômeno estético, na medida em que é identificável à experiência do belo. [...] Ele nos detém, mas também nos indica em que sentido se encontra, se acha esse campo da destruição.(10)
Isabelle Morin, para explicar a função do belo em Lacan, utiliza palavras que ressoam com o pensamento de Derrida em Mal de Arquivo: "o belo faz ressoar a morte num significante, numa forma, numa cor ou numa nota"(11). E assim retomamos o fio para voltar ao nosso tema: a pulsão de morte inscreve-se ou deixa o seu rasto não diretamente, mas através de uma forma estética. A forma estética resiste, então, à dissolução anarquivante, ao mesmo tempo que carrega em si, como um rasto ou um espectro, o eco da ameaça que ela conjura – como, talvez, no quadro Os Embaixadores, de Holbein. De qualquer forma, o apagamento que é operado pela pulsão de morte é importante, segundo Joel Birman: "a pulsão de morte era então um mal de arquivo, pois ela apagava os arquivos existentes para que novos arquivos pudessem ser inscritos"(12).
Embora tratemos aqui dos conceitos de pulsão de morte e de arquivo, eles foram tratados com a advertência de que não se trata de oferecer o sentido definitivo do conceito – pois isso nem seria possível –, mas sim de pensar e observar como eles se articulam neste momento. Sobre esta impossibilidade de fixar o conceito, Derrida diz: "assim vai todo o conceito: sempre a deslocar-se porque nunca faz um consigo mesmo. O mesmo acontece com a tese que põe e dispõe os conceitos, a história dos conceitos, a sua formação tanto quanto a sua arquivação"(13) e podemos voltar a tudo o que dissemos sobre o mal de arquivo, pois o conceito, uma vez arquivado, será sempre ele mesmo assombrado pela pulsão de morte. E, com isso, segundo Derrida, a pulsão de morte provoca um movimento infinito de destruição radical que é fundamental para que o desejo possa surgir: "nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem mesmo nenhuma compulsão à repetição, nenhum 'mal-de' surgiria para quem, de uma forma ou de outra, já não está em mal de arquivo"(14), a destruição anda de mãos dadas com a preservação e o desejo.
Notas de Rodapé:
Derrida, J. (1995). Mal d'archive: Une impression freudienne. Éditions Galilée. P. 16.
Ibid. P. 14
Ketelaar, E. (2006). (Dé) Construire l'archive. Matériaux pour l’histoire de notre temps, 82(2), 65-70. https://doi.org/10.3917/mate.082.0065.
Ibid. P. 14
Embora, segundo Derrida, essa tese nunca assuma a forma de uma tese definitiva.
Derrida, J. (1995). Mal d'archive: Une impression freudienne. Éditions Galilée. P. 27.
Ibid. P. 24-25.
Ibid. P. 26.
Ibid. P. 27.
Lacan, Jacques. Le Séminaire, livre VII : L'éthique de la psychanalyse, 1959-1960. Staferla. C'est nous qui soulignons. P. 171.
Morin, I. (2011). Sur la fonction du beau. Psychanalyse, 22(3), 125-128. https://doi.org/10.3917/psy.022.0125.
Birman, J. (2007). Écriture et psychanalyse : Derrida, lecteur de Freud. Figures de la psychanalyse, 15(1), 201-218. https://doi.org/10.3917/fp.015.0201.
Derrida, J. (1995). Mal d'archive: Une impression freudienne. Éditions Galilée. P. 132.
Ibid. P. 142.





