A pesada leveza da mulher
- Amanda

- 16 de set.
- 2 min de leitura
A suavidade delicada de um corpo deitado, após livre mergulho no lago. Braços estendidos, olhos fechados, o conforto da grama. O cheiro da natureza, fresca; da terra, molhada de orvalho. Esforço-me intensamente para me sentir assim, no profundo relaxamento retratado. Concentro-me em cada pequeno detalhe que poderia levar-me a experienciar tamanha leveza. Sinto a carícia da relva na ponta dos dedos enquanto me deixo absorver pela calma que emana do verde do solo, pela delicadeza das pequenas flores costeiras, à beira de um riacho plácido... pela serenidade do rosto de uma mulher adormecida.
Uma mulher que se deixa... se entrega a um descanso desmedido, desarmado, desprotegido.
Uma mulher... apenas...

Mas meus olhos, tão endurecidos pelas infrutíferas tentativas de ser, somente ser, uma mulher - mulher desarmada, mulher entregue à leveza quase pura de um descanso - se agarra à impossibilidade de repouso tão doce em mundo tão amargo para seres como eu-e-ela.
Vulnerabilidade. É esta a sensação que ultrapassa o retrato de pacificidade presente na obra. É a vulnerabilidade: que apanha o meu olhar, que o conduz, indignado, a essa mulher (!) que se descontrai tão naturalmente. Que me fez franzir o cenho, aprisionando-me ao desconforto mais íntimo de ser, como ela, uma mulher. E não poder ser, como ela, vulnerável.
Experiência, paradoxalmente tão minha e tão estrangeira, de uma tranquilidade que me angustia. O que se esconde atrás desta paisagem? Que olhos masculinos atravessam os belos montes que a protegem da luz do sol? Que discursos, ditos, narrativas, a algemam ao solo, a amarram à terra, a encarceram ao outro de forma tão exposta e, para alguns (não-mulheres), tão velada?
A luz que incide sobre o seu corpo nu, a escuridão aproximando-se no céu negro. Em que mundo vive esta mulher? Se comprtilhmos o mesmo plano, a sua tranquilidade subversiva me choca e perturba, ao anúncio de um perigo iminente e inerente à sua condição de "ser mulher". O medo nos acompanha passo a passo, infiltrado em nossas veias, fincado em nossa carne, como facas que nos dilaceram para evitar nos extirpar.
É com uma existência cortada e cortante que ousamos a nos lançar num mundo que tão duramente desloca: mulher em paz, leveza, relaxamento... mulher vulnerável! mulher indefesa! mulher desprotegida! mulher destruível!
Desde que somos (meninas, mocinhas, mulheres), arrancam-nos desta leve paz que busco (tanto) alcançar na minha relação com o quadro.
Procuro calma e sou confrontada pela angústia. Procuro o tranquilo e tropeço no inseguro. Caio no medo. Tento não pensar, apenas sentir. E sou dominada pelo horror daqeueles quem a veem, a observam, com olhos outros - aqueles que tanto me olham pelas ruas. Doi em mim vê-la assim como eu. Doi-me ver-nos arrancadas da simples existência do ser.
Ela, a mulher tranquila que me estremece, existe, simplesmente. Se banha ao lago, simplesmente. Descansa, simplesmente.
E eu, a mulher inquieta que a observa, questiono-me, no mais profundo do meu ser: é possível que uma mulher seja, simplesmente?
Mulheres, nossa(s) existência(s) é, em si, subversiva.
Das minhas experiências nos museus. Esta, no Musée Fabre, em Montpellier, em 2024.




