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Nossos textos

A pesada leveza da mulher

  • Foto do escritor: Amanda
    Amanda
  • 16 de set.
  • 2 min de leitura

A suavidade delicada de um corpo deitado, após livre mergulho no lago. Braços estendidos, olhos fechados, o conforto da grama. O cheiro da natureza, fresca; da terra, molhada de orvalho. Esforço-me intensamente para me sentir assim, no profundo relaxamento retratado. Concentro-me em cada pequeno detalhe que poderia levar-me a experienciar tamanha leveza. Sinto a carícia da relva na ponta dos dedos enquanto me deixo absorver pela calma que emana do verde do solo, pela delicadeza das pequenas flores costeiras, à beira de um riacho plácido... pela serenidade do rosto de uma mulher adormecida. 

Uma mulher que se deixa... se entrega a um descanso desmedido, desarmado, desprotegido.

Uma mulher... apenas...


Henri Gervex, La beigneuse endormie, anos 1900
Henri Gervex, La beigneuse endormie, anos 1900

Mas meus olhos, tão endurecidos pelas infrutíferas tentativas de ser, somente ser, uma mulher - mulher desarmada, mulher entregue à leveza quase pura de um descanso - se agarra à impossibilidade de repouso tão doce em mundo tão amargo para seres como eu-e-ela.


Vulnerabilidade. É esta a sensação que ultrapassa o retrato de pacificidade presente na obra. É a vulnerabilidade: que apanha o meu olhar, que o conduz, indignado, a essa mulher (!) que se descontrai tão naturalmente. Que me fez franzir o cenho, aprisionando-me ao desconforto mais íntimo de ser, como ela, uma mulher. E não poder ser, como ela, vulnerável.  


Experiência, paradoxalmente tão minha e tão estrangeira, de uma tranquilidade que me angustia. O que se esconde atrás desta paisagem? Que olhos masculinos atravessam os belos montes que a protegem da luz do sol? Que discursos, ditos, narrativas, a algemam ao solo, a amarram à terra, a encarceram ao outro de forma tão exposta e, para alguns (não-mulheres), tão velada?


A luz que incide sobre o seu corpo nu, a escuridão aproximando-se no céu negro. Em que mundo vive esta mulher? Se comprtilhmos o mesmo plano, a sua tranquilidade subversiva me choca e perturba, ao anúncio de um perigo iminente e inerente à sua condição de "ser mulher". O medo nos acompanha passo a passo, infiltrado em nossas veias, fincado em nossa carne, como facas que nos dilaceram para evitar nos extirpar.


É com uma existência cortada e cortante que ousamos a nos lançar num mundo que tão duramente desloca: mulher em paz, leveza, relaxamento... mulher vulnerável! mulher indefesa! mulher desprotegida! mulher destruível!


Desde que somos (meninas, mocinhas, mulheres), arrancam-nos desta leve paz que busco (tanto) alcançar na minha relação com o quadro.


Procuro calma e sou confrontada pela angústia. Procuro o tranquilo e tropeço no inseguro. Caio no medo. Tento não pensar, apenas sentir. E sou dominada pelo horror daqeueles quem a veem, a observam, com olhos outros - aqueles que tanto me olham pelas ruas. Doi em mim vê-la assim como eu. Doi-me ver-nos arrancadas da simples existência do ser.


Ela, a mulher tranquila que me estremece, existe, simplesmente. Se banha ao lago, simplesmente. Descansa, simplesmente. 

E eu, a mulher inquieta que a observa, questiono-me, no mais profundo do meu ser: é possível que uma mulher seja, simplesmente?


Mulheres, nossa(s) existência(s) é, em si, subversiva.



Das minhas experiências nos museus. Esta, no Musée Fabre, em Montpellier, em 2024.


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