Surrealismo e Psicanálise: um tempo derretido
- Amanda, Gabriela e Marie

- 26 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 28 de ago.
A proximidade entre o surrealismo e a psicanálise não é um segredo e se manifestou tanto nas artes visuais, com pintores como Magritte e Dalí, quanto em encontros entre personagens históricos como Breton e Freud, Dalí e Lacan. Embora Freud não tenha se interessado pelo surrealismo, o contrário não é verdadeiro: as elaborações freudianas sobre um eu “não mestre em sua própria casa” muito interessavam aos escritores surrealistas, que viam no inconsciente - esse para-além do “eu consciente de si” - uma fonte de exploração para a criação artística.
Lacan por sua vez não ignorou o movimento surrealista. Em 1931, ele recorre a Dalí para seus estudos sobre a paranoia, realizados em sua tese de doutorado publicada em 1932 e intitulada De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité (A psicose paranóica em suas relações com a personalidade). Mas, o que Dali tem a ver com a paranoia?
O artista, em sua curiosidade pelo inconsciente e suas “manifestações”, inicia o que denomina como “método crítico-paranoico”: a auto-indução de alucinações com finalidades criativas. Isso mesmo: alucinações para criar suas obras de arte.
“A diferença entre mim e um louco”, disse ele, “é que eu não sou louco”.
Moma Collection, https://www.moma.org/collection/works/79018
Um ano depois de iniciar esse processo de criação artística, Dalí pinta o tão conhecido quadro dos relógios derretidos: A Persistência da Memória. A obra contesta a imposição de uma normalidade realista, racional, consciente. Os relógios deformados desafiam a noção imperiosa de um único tempo, o cronológico. Articulando estranheza e familiaridade, Dalí buscava “materializar a irracionalidade com a fúria da precisão”, infiltrando elementos “anormais” e inquietantes a cenários cotidianos.
O inconsciente opera de forma semelhante. Desmonta o previsível e escapa ao esperado impondo-nos um tempo que não segue o relógio que ordena nossas vidas. Freud afirmava: o inconsciente é atemporal. O quadro A persistência da memória, de Salvador Dalí, brinca com essa noção. Ao finalizar sua pintura, o artista pergunta a sua esposa se ela conseguiria esquecer a imagem de sua obra em um tempo de 3 anos, ao que sua a mulher responde que, uma vez vista, aquela tela jamais poderia ser esquecida por ela.

A memória pode persistir para além da definição precisa de minutos e horas. O inconsciente, que podemos relacionar com a noção de “irracionalidade” para Dali, deforma relógios, derrete ponteiros, marcações, determinações, previsões e, sobretudo, exatidões. Assim como o inconsciente, os distorcidos relógios “irracionais” de Dali misturam-se ao familiar, indicando a existência do bizarro neste mundo tão cheio de normalidades. Por mais que escapem ao esperado, ambos, inconsciente e seu tempo indefinido, constituem sujeitos que fazem parte do mundo “real”.
Lacan, por sua vez, ultrapassa a noção freudiana de atemporalidade do inconsciente, para propô-lo como orientado por um tempo lógico. Não cronológico, mas lógico. Sonhos, angústias ou lembranças que parecem retornar de repente são testemunhas de que o tempo lógico rompe padrões pré-estabelecidos de normalidade - “Achei que eu já tinha resolvido essa questão”... e olha ela aqui de novo, né?!.
Pelo inconsciente, o inesperado insiste, o antigo retorna — e é por isso que a dor não obedece a calendários. A memória persiste. Nem tudo se mede em horas.
Mas, então… vamos sofrer pra sempre?
Se é pela lógica que o inconsciente se orienta… é atuando pela lógica que podemos criar novas posições diante de antigos sofrimentos, até que, de tanto espiá-los de diferentes ângulos, elas percam seu espaço para novas memórias.
FREUD, S., Une difficulté de la psychanalyse, 1917.
LACAN, J., De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité, 1932.
SANTOS, L. G. dos, Surrealismo e Psicanálise: O inconsciente e a paranoia, 2017.
Moma Collection, https://www.moma.org/collection/works/79018




